comorosasdeareia

palavras...como "rosas de areia" ou "flores do deserto"...

sábado, novembro 26, 2005

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PÁTRIA

Por um país de pedra e vento duro
Por um país de luz perfeita e clara
Pelo negro da terra e pelo branco do muro

Pelos rostos de silêncio e de paciência
Que a miséria longamente desenhou
Rente aos ossos com toda a exactidão
Do longo relatório irrecusável

E pelos rostos iguais ao sol e ao vento
E pela limpidez das tão amadas
Palavras sempre ditas com paixão
Pela cor e pelo peso das palavras
Pelo concreto silêncio limpo das palavras
Donde se erguem as coisas nomeadas
Pela nudez das palavras deslumbradas

- Pedra rio vento casa
Pranto dia canto alento
Espaço raiz e água
Ó minha pátria e meu centro

Me dói a lua me soluça o mar
E o exílio se inscreve em pleno tempo.

Sophia de Mello Breyner

domingo, novembro 20, 2005

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CHUVA
Hoje chove muito, muito,
e parece que estão lavando o mundo.
meu vizinho do lado contempla a chuva
e pensa em escrever uma carta de amor
uma carta à mulher que vive com ele
e cozinha para ele e lava a roupa para ele e faz amor com ele
e parece sua sombra
meu vizinho nunca diz palavras de amor à mulher
entra em casa pela janela e não pela porta
por uma porta se entra em muitos lugares
no trabalho, no quartel, no cárcere,
em todos os edifícios do mundo
mas não no mundo
nem numa mulher, nem na alma
quer dizer, nessa caixa ou nave ou chuva que chamamos assim
como hoje, que chove muito
e me custa escrever a palavra amor
porque o amor é uma coisa e a palavra amor é outra coisa
e somente a alma sabe onde os dois se encontram
e quando, e como
mas o que pode a alma explicar?
por isso meu vizinho tem tormentas na boca
palavras que naufragam
palavras que não sabem que há sol porque nascem e morrem na mesma noite em que amou
e deixam cartas no pensamento que ele nunca escreverá
como o silêncio que há entre duas rosas
ou como eu, que escrevo palavras para voltar
ao meu vizinho que contempla a chuva
à chuva
ao meu coração desterrado

Juan Gelman

sábado, novembro 12, 2005

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CREPUSCULAR
A incerteza cai com a tarde
no limite da praia. Um pássaro
apanhou-a, como se fosse
um peixe, e sobrevoa as dunas
levando-a no bico. O
seu desenho é nítido, sem
as sombras da dúvida ou
as manchas indecisas da
angústia. Termina com a
interrogação, os traços do fim,
o recorte branco de ondas
na maré baixa. Subo a estrofe
até apanhar esse pássaro
com o verso, prendo-o à frase,
para que as suas asas deixem
de bater e o bico se abra. Então,
a incerteza cai-me na página, e
arrasta-se pelo poema, até
me escorrer pelos dedos para
dentro da própria alma.
Nuno Júdice