POEMA À MÃE
No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe.
Tudo porque já não sou
o menino adormecido
no fundo dos teus olhos.
Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.
Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.
Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.
Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.
Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!
Olha - queres ouvir-me? -
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;
ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;
ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal...
Mas - tu sabes - a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber.
Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.
Boa noite. Eu vou com as aves.
Eugénio de Andrade
6 Comments:
At 11:48 da tarde, JPD said…
Olá Maria!
Bela escolha, a do Eugénio, para este dia.
Bjs
At 12:48 da manhã, wind said…
Um dos poemas mais belos de EA. beijos
At 6:33 da tarde, Manel do Montado said…
(...) Olha - queres ouvir-me? -
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;(...)
A minha mãe é tão linda coitadinha, receio o dia que vá e nunca mais lhe veja a ternura nos olhos, o gesto dócil de quem é bom.
Parabéns pela homenagem às mães, esses exemplos do sacrifício familiar.
Um beijo
At 9:26 da tarde, lique said…
No meu antigo blog do Sapo, postei este poema (pela segunda vez, aliás). Parece-me um dos mais belos poemas de um filho adulto para a sua mãe. Está lá tudo!
Beijinhos
At 2:46 da manhã, Anónimo said…
Não conhecia. Agora conheço. Comoveu-me.
Grato.
At 11:46 da tarde, Anónimo said…
Não sei como vim aqui dar, mas dei e gostei, gostei da escolha dos poemas, e gostei de um gosto teu... pensava que pouca gente em Portugal tinha como referencia musical Patxi Andion... e por isso (e não só), escolho Eugénio... só para ti...
"Hoje roubei todas as rosas dos jardins
e cheguei ao pé de ti de mãos vazias"
(e gosto muito de algum jazz)
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