Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol
a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos
os amigos mais íntimos com um cartão de convite
para o ritual do Grande Desfazer: "Fulano de tal comunica
a V. Exa. que vai transformar-se em nuvem hoje
às 9 horas. Traje de passeio".
E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos
escuros, olhos de lua de cerimónia, viríamos todos assistir
à despedida.
Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio.
"Adeus! Adeus!"
E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes...
(primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos... )
a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se
em fumo... tão leve... tão subtil... tão pólen...
como aquela nuvem além (vêem?) — nesta tarde de Outono
ainda tocada por um vento de lábios azuis...
José Gomes Ferreira
6 Comments:
At 8:53 da tarde, Anónimo said…
que poema incrível! li, reli, trili: estou pasma. vou salvar aqui pra aprendê-lo.
beijo de primavera, Maria.
At 8:31 da manhã, Anónimo said…
Um poema que descreve um percurso poético da morte através das nuvens. Gostei.
At 10:04 da tarde, JPD said…
Olá maria: a escolha é excelente. Se se fizesse uma resenha da poesia que aqui tens divulgado, obter-se-ia uma antologia admirável.
Este poema do ZGomes Ferreira é extraordinário por execrar a morte com uma ironia finíssima.
Beijinhos
At 10:25 da tarde, lique said…
E seria uma bela forma de morrer! Um poema extraordinário. Beijinhos, Maria.
At 8:42 da tarde, M.P. said…
Olá, Maria! Depois ler este Poema de Serenidade de Outuno de Paz venho desejar-te uma boa semana e agradecer-te as palavras bonitas que vais deixando em meu "território"! :)**
At 1:07 da tarde, fotArte said…
Por acaso, ou não, encontrámo-nos. E como isso é espectacular...
Adoro conhecer os lindos trabalhos dos meus colegas bloguistas.
PARABÉNS e felicidades!
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