(24-02-27/16-o6-96)
Que fique só da minha vida
um monumento de palavras
Mas não de prata Nem de cinza
Antes de lava Antes de nada
Daquele nada que se aviva
quando se arrisca uma viagem
por entre os pântanos da ira
além do sol das barricadas
Ou quando um poço que cintila
parece o tecto de uma sala
Ou quando importa que se extinga
dentro de nós a inexacta
irradiação que vem das criptas
em que o azul nos sobressalta
em que à penumbra se diria
que se acrescenta o som das harpas
Ou quando a terra não expira
senão segredos feitos de água
Ou quando a morte nos avisa
Ou quando a vida nos agarra
Adeus ó pombas
todas iguais ante as muralhas
Adeus veredas invisíveis
que na floresta nos aguardam
Adeus ó barcos à deriva
Adeus canais Adeus guitarras
Adeus ó sílabas da brisa
Adeus sibilas ninfas cabras
tantas que a Deus se prometiam
mas só a deuses encontravam
Adeus ó deusas de partida
no meu minuto de chegada
Adeus ardentes evasivas
a ver se um pouco as demorava
Se as demorava ou demovia
de tão depressa me deixarem
Adeus ó portas clandestinas
que ao fim da tarde se entreabrem
Adeus adeus íntimas vítimas
das cerimónias implacáveis
Como deixar-vos todavia
se as vossas mãos as vossas faces
ora parecem despedir-me
ora conseguem renovar-me
E tantas tantas tantas ilhas
no mar que não nos limitasse
Como deixar-vos se na linha
deste horizonte aquela praia
tão de repente se aproxima
tão de repente se me escapa
Jorram vulcânicas as crinas
de récuas de éguas subaquáticas
Jorram do fundo. E à superfície
crescem as ilhas assombradas
Eis que de longe lembras liras
mas entre as ondas só navalhas
É quando o poeta menos grita
que mais se crê nas suas lágrimas
Fique porém de quanto sinta
um monumento de palavras
Mas não de bronze Nem de argila
E nem de cinza nem de mármore
De fumo sim Do que se infiltra
no coração das velhas máquinas
no estertor dos suicidas
no riso triste dos apátridas
no ondular das gelosias
de onde se espia a madrugada
Do fumo enfim que se eterniza
na longa insónia das estátuas
E que de nós a alma extirpa
não nos deixando nem a máscara
quando é só corpo o que nos fica
para morrer às mãos dos bárbaros
E que nos conta só mentiras
E nos aceita só verdades
Múltiplas ágeis infinitas
sejam as linhas que ele trace
como as que traça a própria vida
sem liberdade em liberdade
Adeus ó fogo Adeus raízes
que todo o fumo alimentavam
E adeus o mel Adeus urtigas
da minha terra calcinada
Adeus cortiço Adeus cortiça
Ó madrugadas inflamáveis
Já se nem sabe a que sevícias
é que por fim a boca sabe
Nem qual a sombra que improvisa
esta sonâmbula sonata
que apazigua que arrepia
que nos destrói que nos exalta
Nem qual o crime inda mais crime
se acaso chega a desvendar-se
Adeus adeus eterna esfinge
Adeus Não penses que me ultrajas
E lembro tudo o que era simples
antes do nada inevitável
Mas que do nada ao menos fique
um monumento de palavras
David Mourão Ferreira
12 Comments:
At 4:10 da tarde, Manel do Montado said…
SEmpre me foi mais fácil a leitura do que escreveu do que a simpatia pela sua presença televisiva. Não gostava e pronto!
No entanto reconheço-lhe os efectivos méritos que tem.
At 8:08 da tarde, Manuel Veiga said…
Uma belíssima homenagem! Por que será que na nossa Terra os grandes poetas ficam tão esquecidos? sabia que aqui te encontraria, atenta e sensível...
At 10:25 da tarde, JPD said…
Terão passado dez sobre a morte de DMF.
Hão-de passar muitos mais, até que a nossa memória se turve e desgraçadamente deixemos de relembrar um poeta tão eloquente.
Problema nosso, nunca da poesia dele.
Excelente escolha.
Bjs
At 3:23 da tarde, lique said…
Sabia que te lembrarias. E dele ficou, de facto um monumento de palavras. A relembrar, sempre.
Beijinhos
At 7:21 da tarde, Anónimo said…
E foi o que ele deixou. Ainda bem que deixou.
Um beijo grande em dia de tempestade( como nós duas gostamos..rs)
At 2:17 da tarde, Manuel Veiga said…
bom fim de semana. beijos
At 11:11 da tarde, Å®t Øf £övë said…
Maria,
Muito bonito este poema.
Obrigado pela partilha.
Bjs.
At 5:00 da tarde, Márcia Maia said…
um beijo grande daqui, Maria, onde choveeeeeeeeeee.
At 2:30 da tarde, Manuel Veiga said…
umbeijo saudoso. na passagem...
At 10:47 da tarde, M.P. said…
OLá!!! Cá estou de novo! E como sempre leio as boas escolhas que fazes. Sou suspeita a falar de Mourão-Ferreira pois é um Poeta que adoro! Espero que tudo esreja bem contigo. Por aqui um forte desejo de férias que tardam a vir! Deixo-te beijinhos e um até muito breve. :)
At 2:09 da tarde, Manuel Veiga said…
beijo. saudades...
At 3:11 da tarde, Álvaro Filipe said…
Este poema resume toda a essência de um vida e lança David Mourão-Fereira para a eternidade como um grande poeta! Espalhados por esses cemitérios cheios de cruzes e frases todas umas iguais às outras, quanto seria surpreendente e assustadoramente fenomenal ler um poema destes no leito de eternidade de um mortal...
Obrigado pela partilha
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