comorosasdeareia

palavras...como "rosas de areia" ou "flores do deserto"...

sexta-feira, abril 29, 2005

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DÁ-ME A TUA MÃO

Dá-me a tua mão: vou agora contar-te
como entrei no inexpressivo
que sempre foi a minha busca cega e secreta.
De como entrei naquilo que existe
entre o número um e o número dois,
de como vi a linha de mistério e fogo
e que é a linha sub-reptícia.
Entre duas notas de música existe uma nota,
entre dois factos existe um facto,
entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam
existe um intervalo de espaço,
existe um sentir que é entre o sentir
- nos interstícios da matéria primordial
está a linha de mistério e fogo,
que é a respiração do mundo,
e a respiração contínua do mundo
é aquilo que ouvimos
e chamamos de silêncio.


Miguel Torga

segunda-feira, abril 25, 2005

Que Abril se cumpra
para que a morte e a mordaça jamais se repitam na nossa lembrança,
para que amanheça e as madrugadas se façam manhãs, cravos renascidos do fundo da Esperança
Que Abril se cumpra…Que Abril se cumpra…

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Abril de Abril

Era um Abril de amigo Abril de trigo
Abril de trevo e trégua e vinho e húmus
Abril de novos ritmos novos rumos.

Era um Abril comigo Abril contigo
ainda só ardor e sem ardil
Abril sem adjectivo Abril de Abril.

Era um Abril na praça Abril de massas
era um Abril na rua Abril a rodos
Abril de sol que nasce para todos.

Abril de vinho e sonho em nossas taças
era um Abril de clava Abril em acto
em mil novecentos e setenta e quatro.

Era um Abril viril Abril tão bravo
Abril de boca a abrir-se Abril palavra
esse Abril em que Abril se libertava.

Era um Abril de clava Abril de cravo
Abril de mão na mão e sem fantasmas
esse Abril em que Abril floriu nas armas.


Manuel Alegre

quinta-feira, abril 21, 2005

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POEMA DUM FUNCIONÁRIO CANSADO


A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo uma noite só comprida
num quarto só

António Ramos Rosa

quarta-feira, abril 20, 2005

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Cadeia de Literatura
(obrigada, Manela, por me envolveres nesta cadeia…)

P:Não podendo sair do Fahrenheit 451, que livro gostarias de ser?
Uma colectânea de poesia, porque chama nunca apaga chama…

P: Já alguma vez ficaste apanhadinho(a) por um personagem de ficção?

Sim. Pelo velho de “O Velho e o Mar,” do Hemingway, que “viveu” comigo durante algum tempo…

P: Qual foi o último livro que compraste?
“As Flores do Sono” de Pedro Sena
Lino

P: Qual o último livro que leste?
“Desesperadamente Giulia” de Steva Casati Modignani

P: Que livros estás a ler?
“Solstício de Inverno” de Rosamunde Pilcher; “Conversas com Deus” (livroI); releio Teixeira de Pascoaes.

P: Que livros (5) levarias para uma ilha?
“O Velho e o Mar” do Hemingway, “Como Água para Chocolate” da Laura Esquível, a obra de Proust “Em Busca do Tempo Perdido” e toda a poesia de Sophia e Eugénio de Andrade.

P: A quem vais passar esta cadeia (3) e porquê?
Vou passá-la ao Zé do http://melnofrasco.blogspot.com/, pela enorme qualidade da sua colaboração na blogosfera, porque sei do papel importante e essencial que a leitura tem na sua vida e porque é um amigo muito querido; ao Manel (DonBadalo) que participa no http://oblogdalibelua2.blogs.sapo.pt/, porque foi para mim uma surpresa extraordinária como poeta e pela inexplicável (como todas) empatia que desde o primeiro momento me tocou; à Márcia de http://www.tabuademares.blogger.com.br/ que considero também uma poetisa de uma sensibilidade indiszível, e que pela ternura, do longe se faz perto.

Dos três espero que, de “mão dada” aceitem este convite e espero também continuar a gostar muito deles.
Pronto, Manela, mais uma vez obrigada por me envolveres nesta cadeia e pelas tuas palavras sempre queridas.
Foi um prazer “dar a mão”…

terça-feira, abril 12, 2005

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Encosto a cara às quimeras da infância, para exorcizar
a inocência perdida e rodopiar, sobre os sonhos, a valsa
solitária da criança que fui, quando as minhas mãos, nativas
do sol, eram aves de múltiplas cores.
Paro todos os relógios, para escutar a respiração dos dias.
E, como um actor que se esgota na personagem, rasgo
o cenário e danço, como um louco, em redor de malogros
entrelaçados nos meus pulsos. Tenho, em volta do pescoço,
uma lua transparente que me enrouquece a voz.

Graça Pires in
Reino da Lua

sexta-feira, abril 08, 2005

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DO POEMA

O problema não é
meter o mundo no poema; alimentá-lo
de luz, planetas, vegetação. Nem
tão-pouco
enriquecê-lo, ornamentá-lo
com palavras delicadas, abertas
ao amor e à morte, ao sol, ao vício,
aos corpos nus dos amantes —

o problema é torná-lo habitável, indispensável
a quem seja mais pobre, a quem esteja
mais só
do que as palavras
acompanhadas
no poema.

Casimiro de brito