comorosasdeareia

palavras...como "rosas de areia" ou "flores do deserto"...

sábado, setembro 25, 2004

Para a Joana, para todas as Joanas deste país e do mundo…

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BAIRRO NEGRO
Olha o sol que vai nascendo
Anda ver o mar
Os meninos vão correndo
Ver o sol chegar
Menino sem condição
Irmão de todos os nus
Tira os olhos do chão
Vem ver a luz
Menino do mal trajar
Um novo dia lá vem
Só quem souber cantar
Virá também
Negro bairro negro
Bairro negro
Onde não há pão
Não há sossego
Menino pobre o teu lar
Queira ou não queira o papão
Há-de um dia cantar
Esta canção
Olha o sol que vai nascendo
Anda ver o mar
Os meninos vão correndo
Ver o sol chegar
Se até dá gosto cantar
Se toda a terra sorri
Quem te não há-de amar
Menino a ti
Se não é fúria a razão
Se toda a gente quiser
Um dia hás-de aprender
Haja o que houver
Negro bairro negro
Bairro negro
Onde não há pão
Não há sossego
Menino pobre o teu lar
Queira ou não queira o papão
Há-de um dia cantar
Esta canção

José Afonso

quarta-feira, setembro 22, 2004

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Imagem

Tão brando é o movimento
das estrelas, da lua,
das nuvens e do vento,
que se desenha a tua
face no firmamento.

Desenha-se tão pura
como nunca a tiveste,
nem nenhuma criatura.
Pois é sombra celeste
da terrena aventura.

Como um cristal se aquieta
minha vida no sono,
venturosa e completa.
E teu rosto aprisiono
em grave luz secreta.

Teu silêncio em meu peito
de tal maneira existe,
reconhecido e aceito,
que chego a ficar triste
de vê-lo tão perfeito.

E não pergunto nada.
Espero que amanheça,
e a cor da madrugada
pouse na tua cabeça
uma rosa encarnada.

Cecília Meireles

terça-feira, setembro 21, 2004

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Seria Outono aquele dia…

"Mas quem diria ser Outono
se tu e eu estávamos lá?
(Tínhamos sono... Tanto sono!
É bom dormir ao deus-dará...)
E sobre o banco do jardim,
ante a cidade, o cais e o tejo,
seria bom dormir assim,
ao deus-dará, como eu desejo...
Mas o teu seio é que não quis:
tremeu demais sob o meu rosto...
Seria Outono aquele dia,
nesse jardim doce e tranquilo...?
Seria Outono...
Mas havia
todo o teu corpo a desmenti-lo."

David Mourão Ferreira

sábado, setembro 18, 2004

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Vieste pela madrugada vindimar meus sonhos
com tuas mãos imensas
de luar.

Vieste pela madrugada fazer teus os meus desejos
e meu corpo percorreste longamente
com teus dedos desmedidos de ternura
de desejo incendiados.

Vieste pela madrugada com teus dedos magoados
de paixão
fazer teus os meus desejos
cobrir meu corpo de beijos
num mar de sofreguidão.
Vieste pela madrugada...

quarta-feira, setembro 15, 2004

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Através da noite

Ela está exposta na sua frágil frescura
e um pouco mais longínqua e despojada.
Ele procura-a no cimo da montanha
ou numa vertente vertical. A noite é calma,
um barco atravessa o mundo. Junto de um rio
brilham chamas sem rumor. Dispersas
são as imagens e as vozes, mas reunidas
num outro mundo mais sereno e vagaroso.
Ele soletra a pedra nupcial e misteriosa.
Um grito rápido de pássaro atravessa a clareira.
Entre duas árvores cintila a Cassiopeia.
Passam esquivas sombras sob os ramos das árvores.

António Ramos Rosa

terça-feira, setembro 14, 2004

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Marginalidade

Subversivamente
o instinto me descomanda.

E a magia inconsciente
do meu corpo
é um jogo clandestino
de gestos sem eco.

Há um ritual divino
nas carícias sensuais
em que me invento.

Nada me torna inocente
dos meus próprios sentidos
quando solto
as linhas marginais
do pensamento
e me seduzo
com gostos proibidos.

Sempre são excessivos os desejos de quem sonha
a vida toda num momento.

A solidão é como o vento.

É nos olhos dos mendigos
que a noite se prolonga por mais tempo.


Graça Pires

domingo, setembro 12, 2004

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TESTAMENTO

Vou partir de avião

E o medo das alturas misturado comigo

Faz-me tomar calmantes

E ter sonhos confusos

Se eu morrer

Quero que a minha filha não se esqueça de mim

Que alguém lhe cante mesmo com voz desafinada

E que lhe ofereçam fantasia

Mais que um horário certo

Ou uma cama bem feita

Dêem-lhe amor e ver

Dentro das coisas

Sonhar com sóis azuis e céus brilhantes

Em vez de lhe ensinarem contas de somar

E a descascar batatas

Preparem minha filha para a vida

Se eu morrer de avião

E ficar despegada do meu corpo

E for átomo livre lá no céu

Que se lembre de mim

A minha filha

E mais tarde que diga à sua filha

Que eu voei lá no céu

E fui contentamento deslumbrado

Ao ver na sua casa as contas de somar erradas

E as batatas no saco esquecidas

E íntegras.

Ana Luisa Amaral

sexta-feira, setembro 10, 2004

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Não sou frequentadora de grandes superfícies por variadíssimas razões que não vou agora e aqui enumerar, mas sobretudo porque passado algum tempo de lá estar (vá-se lá saber porquê), me sinto enjoada e com enxaqueca. Por isso, vou lá apenas quando sei que só aí encontro algo de que precise mesmo e dificilmente encontrarei em outro lugar. Foi o que aconteceu hoje. Só que, e porque o que é mau por vezes tem também o seu lado bom, foi por ter estado hoje à tarde numa grande superfície e porque havia por lá imensas crianças, que dei comigo a pensar nas crianças "doentes" dos nossos dias, "doentes" com a nossa conivência, "doentes" por nossa culpa, com a nossa colaboração. É sabido que em todo o mundo há milhões de crianças doentes devido a inúmeras e variadas carências de toda a ordem, sobretudo de alimentos e cuidados básicos de saúde. Por essas crianças há muito e muito que fazer, é certo, como é certo ser nosso dever contribuir para que a fome e a doença virem sonho mau que já passou (e não é preciso ir muito longe, se calhar basta olhar com atenção a nossa rua, o nosso bairro a nossa cidade, não é?).
Mas, e as outras crianças? Sim, as outras crianças que também têm "fome" (e têm "tudo"), que também estão doentes e ninguém parece querer ver...
A quem me refiro?
Refiro-me às crianças a quem damos "tudo" e pronto a usar de preferência, que têm o quarto cheio de jogos e brinquedos que perderam o interesse em cinco minutos de brincadeira e agora jazem abandonados, acumulando ácaros e desencanto, pequenas sucatas na casa de cada um de nós...
Refiro-me às crianças a quem organizamos todos os lazeres com ginástica, natação, ballet, judo, tenis, música informática (muitas vezes em acumulação com actividades idênticas já constantes dos seus currículos escolares)...
Refiro-me às crianças a quem, em nome dum sucesso miragem que dizemos (e acreditamos) querer para nós e para elas, roubamos quotidiana e repetidamente a capacidade de imaginar, de construir por suas próprias mãos, de lutar para alcançar o que quer que seja (às vezes até o tempo de saborear o desejo, que é tão bom, nós lhe roubamos)...
Em contrapartida, oferecemos-lhes de mão beijada, e, umas vezes com um sorriso imbecil nos lábios, outras vezes distraídamente porque temos mais em que pensar, oferecemos-lhes, dizia eu, um doloroso e incomensurável tédio, um aborrecimento do tamanho do mundo...
Sim, talvez eu esteja a exagerar, mas não exagero se disser que foi esse enorme aborrecimento que li nos rostos de muitas das crianças que hoje observei num grande centro comercial... Crianças que mais me pareceram borboletas tristes... Foi e então que me vieram à ideia as palavras de Susana Tamaro no seu livro "O Fogo e o Vento":
"O aborrecimento é a bagagem que leva consigo quem se contenta com a superficialidade, a exterioridade. Quem acredita que existir é estar na plateia a assistir a um espectáculo sem sequer se dar ao trabalho de aplaudir. O aborrecimento não mata, mas envenena subtilmente, torna-nos inquietos, faz de nós vítimas de um movimento que não conduz a lado nenhum. Então, transformamo-nos em borboletas dos finais do Verão que se precipitam para qualquer fonte de luz como se fosse o sol e dançam à sua volta até morrerem, queimadas ou exaustas."
Pois é, por mim, a serem borboletas, que as nossas crianças sejam como as da Primavera, ágeis e coloridas, uma lição de vida viva...

(Para o que me havia de dar hoje, hem? Eu bem digo que as idas a grandes centros comerciais não me fazem nada bem...)

quinta-feira, setembro 09, 2004

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Esperança

Se quiseres partir
amanhã
eu paro o mundo
com facilidade assim
com esta mão
e então descobriremos
o mais profundo fundo
que há no mundo
que é no irmos fundo às
coisas
que há razão
de verdades consumadas
me consomem
de falácias bem
montadas me alimentam
mas meu filho mora o
reino do futuro
que é mais duro
e não vai ser com
palavras
que o contentam.

Se a morte lenta te
rebenta sob a pele
a cada dia
e se no teu braço
apenas sentes a força
de um cansaço
organizado
mas manténs na tua
fronte a dúvida
e o gosto pelo longe e
a maresia
e se sentes no teu
peito de criança
a alma de um sonho
amordaçado
se quiseres partir
amanhã
eu paro o mundo
com facilidade assim
com esta mão
e então descobriremos o
mais profundo
fundo que há no mundo
que é no irmos fundo às
coisas que há razão

Pedro Barroso

terça-feira, setembro 07, 2004

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De passagem,
como a véspera
imprecisa do poema,
principia em mim
a planície agreste
da solidão dos outros.
E a não ser
o silêncio poente
dos meus olhos,
tudo o resto me diz
que sou um pássaro
a voar, inconsequentemente,
no sentido das palavras.

Graça Pires

segunda-feira, setembro 06, 2004

Dizia hoje Teresa Lago num programa de TV sobre Ciência, que no planeta Terra visto do espaço, não se vislumbravam nem fronteiras, nem muros da vergonha e outros que tais, nem condomínios fechados, nem ghettos organizados de acordo com raças, religiões ou cores... Hoje também, vagueando pela net ,encontrei esta saudação de Moacyr Félix a Yuri Gagarin e à espaçonave Myr. Para além de constituir um belíssimo poema, penso que a sua mensagem é hoje tanto ou mais premente como há 18 anos atrás... Por isto faço dela o meu post de hoje





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Saudação a Gagarin e ao futuro

Yuri, o soviético, soube, mais que qualquer homem,
que a Terra é azul! E que o amor humano
entre as estrelas tem a beleza de uma rua
sem lutas de classe e sem medos e sem fome
e na qual cada desejo nosso afagará no tempo
o próprio corpo de uma eternidade nua.
Myr, esta é a real morada da vida que senta e pensa
no infinito a paz, essa coisa indefinida e imensa
que se acopla ao rastro de Gagarin e nos convida
a ver nos portais da nossa história a ponte extensa
para o amor andar no chão da desmedida.
Myr, nós te saudamos, olho no futuro
que nos olhos de Yuri Gagarin se acendeu
quando em cavalos de luz sobre o vazio escuro
o sonho humano se apossou do céu !
Myr, nós te saudamos, nós, homens da Terra
que te sabemos canção e paz e não horror e guerra !


Moacyr Félix

domingo, setembro 05, 2004

( De repente, o café tornou-se cósmico)

Vais perguntar outra vez porque existes?
Para quê? Para ficares com os olhos
[do tamanho de ilhas tristes?]
Pois não sabes que já milhões como tu e como eu
pediram em vão às aves
que procurassem nas nuvens aquela Porta
de que nem a Morte tem as chaves?
E quem a abriu? Quem sabe que Porta é?
(Rapaz! Mais um café!)

José Gomes Ferreira
(O soneto que só errado ficou certo)

Se eu pudesse iluminar por dentro as palavras de todos os dias
para te dizer, com a simplicidade do bater do coração,
que afinal ao pé de ti apenas sinto as mãos mais frias
e esta ternura dos olhos que se dão.

Nem asas, nem estrelas, nem flores sem chão
- mas o desejo de ser a noite que me guias
e baixinho ao bafo da tua respiração
contar-te todas as minhas covardias.

Ao pé de ti não me apetece ser herói
mas abrir-te mais o abismo que me dói
nos cardos deste sol de morte viva.

Ser como sou e ver-te como és:
dois bichos de suor com sombra aos pés.
Complicações de luas e saliva

José Gomes Ferreira

quarta-feira, setembro 01, 2004

O SONHO

Pelo Sonho é que vamos,
comovidos e mudos.
Chegamos? Não chegamos?
Haja ou não haja frutos,
pelo sonho é que vamos.
Basta a fé no que temos,
Basta a esperança naquilo
que talvez não teremos.
Basta que a alma demos,
com a mesma alegria,
ao que desconhecemos
e do que é do dia-a-dia.
Chegamos? Não chegamos?
- Partimos. Vamos. Somos.
Sebastião da Gama